Por Sean Ingle*
@seaningle
"The Guardian"
A sede de aumentar as receitas significa mais conteúdo para os nossos olhos. Mas será que alguns eventos correm agora o risco de matar a galinha dos ovos de ouro?
Entramos numa era em que os torneios da Copa do Mundo parecem o equivalente a um corte de diretor de quatro horas: brilhante, mas com falhas e muitas cenas descartáveis antes do desfecho emocionante. A Copa do Mundo de Críquete Masculino levou 38 dias e 45 partidas para reduzir dez equipes a quatro semifinalistas – o que, surpreendentemente, levou dez dias a mais do que toda a Copa do Mundo FIFA de 2022 no Catar. Enquanto isso, seu equivalente na modalidade rugby union (times com 15 atletas) precisou de um mês e 40 jogos para reduzir 20 países para oito. E não vimos nada ainda.
Em 2027, as ligas de críquete e rugby terão mais quatro times e mais partidas. A Copa do Mundo da Fifa de 2026 nos EUA, Canadá e México está se tornando uma versão esportiva do documentário Super Size Me (no qual um cineasta filma a própria experiência de passar um mês comendo apenas fast food): de 32 times para 48, e de 64 partidas para 104. Os acadêmicos têm um termo abrangente para torneios tão grandes que milhões em todo o mundo gravitam em torno deles: megaeventos esportivos. Pense nas Copas do Mundo. Pense nos Jogos Olímpicos. Pense grande, grande, grande. Mas será que grande é sempre melhor?
O The Guardian conversou com mais de uma dúzia de especialistas em liderança esportiva, radiodifusão, marketing e academia para descobrir. Ao longo do caminho também nos perguntamos por que estamos assistindo a um surto de crescimento na duração dos eventos desportivos apesar de constantemente afirmarem que a capacidade de atenção dos telespectadores está diminuindo? Alguns esportes correm o risco de matar a galinha dos ovos de ouro?
A pergunta óbvia – “Por que os esportes estão fazendo isso?” – também tem uma resposta óbvia: dinheiro e oportunidade de ganhar muito mais com ele.
“O KPI [indicador-chave de desempenho] número um para os responsáveis pelos esportes é gerar mais dinheiro”, diz Tim Crow, que iniciou sua carreira no Test and County Cricket Board (conselho que regulamentou o esporte na Inglaterra entre os anos 60 e 90), antes do England and Wales Cricket Board (entidade que regulamenta o críquete na Inglaterra e no País de Gales), e mais tarde tornou-se uma mente-chave por trás do marketing das Olimpíadas de Londres 2012.
"É simples assim. Quanto mais estoque (de eventos) você der à televisão, melhor será o seu negócio.”
Claro que é a economia, estúpido (frase de James Carville, estrategista político americano na década de 90). A Fifa obteve receitas totais de 7,5 mil milhões de dólares durante o ciclo da Copa do Mundo entre 2019 e 2022, o maior lucro de sua história, com 6 bilhões de dólares gerados apenas pelo torneio no Catar. Como sabe que tem um público cativo, então, por que não oferecer ainda mais jogos e acumular benefícios?
O esporte também tem uma enorme vantagem na medida em que as suas audiências televisivas são notavelmente fixas. Nos EUA, por exemplo, 94 das 100 maiores audiências televisivas em 2022 vieram de eventos esportivos. Com uma audiência de 16,1 milhões no Reino Unido, o jogo das quartas-de-final da Copa do Mundo da Fifa contra a França (10 de dezembro de 2022) superou o número de pessoas que assistiram ao funeral da Rainha, ao jubileu de platina (70 anos do reinado da rainha Elizabeth II, em 2022) e ao reality show da TV inglesa I’m a Celebrity… Get Me Out of Here!, no qual celebridades são expostas a condições extremas de sobrevivência).
Notadamente num mundo onde há tanta competição pelos olhos – desde serviços de streaming, YouTube, TikTok e muito mais – e muito menos programas de televisão que todos assistem, os esportes oferecem algo raro: referências culturais e experiências comunitárias.
Como afirma Charles Beall, vice-presidente de estratégia digital do gigante global IMG (agência especializada em comunicação digital):
“O poder do esporte nesta batalha cada vez maior pela atenção é incomparável. E o esporte premium ao vivo sempre será importante, vai agregar valor ao público e às plataformas, atrair e reter os espectadores.”
Muitos esportes também gostam da ideia de “crescer o jogo”, a exemplo da expansão das Copas do Mundo. Mas talvez haja também uma medida defensiva em tudo isto. A maioria dos espectadores estão focados em “grandes eventos” agora já que não há tempo para acompanhar a tosse e a saliva de todos os esportes. Uma Copa do Mundo serve como uma vitrine e um símbolo para dizer que um evento é importante – então por que não prolongá-lo?
No entanto, nem todos pensam que esta tendência seja uma coisa boa. Uma fonte muito experiente disse ao The Guardian que temia que alguns esportes estivessem com risco de “exagerar” e “cair no precipício” com muitos jogos sem sentido, que sacrificam os jogadores e deixam os fãs entediados.
“Na próxima vez que você encontrar Gianni Infantino (presidente da Fifa), pergunte a ele: ‘Quando você acha que a Fifa poderá chegar a 206 seleções para a Copa do Mundo’”, disse ele. “É uma 'redução ao absurdo' (quando a partir de uma ou mais hipóteses se chega a conclusões absurdas ou ridículas).”
Supõe-se que o esporte seja uma questão de imprevisibilidade e perigo. No entanto, as recentes eliminatórias para a Eurocopa 2024 na Alemanha tiveram muito pouco de ambos. Embora o Mundial de Críquete masculino tenha tido alguns resultados surpreendentes – o Afeganistão derrotou a Inglaterra e a Holanda a África do Sul – a sua fase de grupos prolongada reduziu drasticamente o valor de tais vitórias. A falta de jogos disputados também não ajudou.
A falta de entusiasmo afetou o público da TV? Talvez. Os números de audiência da Sky não foram tão bons quanto o esperado, o que internamente foi atribuído à fraca campanha da Inglaterra.
No entanto, Ed Warner, ex-presidente do UK Athletics (a UKA, Federação de Atletismo do Reino Unido), diz que a falta de estádios lotados na Índia deveria servir como um alerta mais amplo. “Quando eu estava na UKA, a BBC sempre nos disse que era crucial lotar nossos eventos”, diz Warner. “Disseram que as pessoas iriam desligar a TV se vissem os estádios vazios. Mas, se ninguém se importa o suficiente para ir, por que os espectadores deveriam se preocupar?
A Copa do Mundo de Rugby, disputada com lotação esgotada, não enfrentou tais problemas. Embora a fase de mata-mata tenha sido fascinante, a fase de grupos foi tudo menos isso. Apenas oito dos 40 jogos terminaram com pontuação de sete pontos ou menos entre as equipes, enquanto a margem média de vitória nas fases de grupos foi de quase 32 pontos. Dos oito participantes nas quartas-de-final, apenas Fiji foi uma surpresa.
A falta de equilíbrio competitivo importa para os fãs? Surpreendentemente, de acordo com o Robbie Butler, economista da University College Cork, não.
“Há uma literatura considerável que mostra que torcedores de diferentes esportes não se importam com o equilíbrio das competições”, diz ele. “Nos últimos anos, isso tem sido testemunhado em esportes como Fórmula 1, tênis, golfe e boxe. Nosso trabalho recente na F1 – um esporte dominado por duas equipes desde 2010 – descobriu que os fãs dos EUA não estavam motivados para assistir o esporte por causa do aumento da competição. Ficavam felizes apenas em ver uma vitória dominante de Lewis Hamilton ou Max Verstappen.”
Outro economista proeminente, David Forrest, da Universidade de Liverpool, também escreveu de forma persuasiva e extensiva sobre o poder das estrelas, superando a incerteza quando se trata de audiências televisivas. Mas Crow, que agora é consultor de negócios de esportes eletrônicos, diz que seria errado presumir que os jovens fãs não se importam com o perigo.
“O imprevisto é incrivelmente atraente para os jovens”, diz ele. “Nos esportes eletrônicos, quando um jogo é fácil ou duas equipes de ponta se enfrentam, você consegue perceber a diferença nos olhos. O boxe e os esportes de combate, ambos por pay per view, também são muito populares entre os jovens, que são atraídos por eles por causa do perigo.”
Então, o que pode acontecer a seguir? De acordo com Crow, o crescimento dos megaeventos esportivos provavelmente fará com que outros sejam excluídos.
“Acho que veremos vários esportes grandes lutando para não desaparecer do mapa”, diz ele. Crow se recusa a dizer de quais esportes está falando para não incomodar as pessoas com quem trabalha.
“Mas não é preciso muito esforço para descobrir quais são eles, basta olhar os gráficos de receita, lucro e torcedores.”
Enquanto isso, Beall, especialista nas tendências de mudança do público, diz que as pessoas estão erradas ao afirmarem que os esportes mais jovens têm capacidade limitada de atenção. Com telefones e Internet disponíveis, eles têm infinitas possibilidades de atração. “O público não vai tolerar ficar entediado”, diz ele. “Eles podem mudar (de plataforma) com muito mais facilidade e é isso que impulsiona a redução dos formatos esportivos.”
Beall espera que isso continue e que os esportes ajustem a forma de comercialização e venda para se manterem.
“Qualquer pequeno intervalo de tempo pode ser um momento de entretenimento: quando está esperando em uma fila ou em uma viagem que de outra forma seria vazia, com tempo perdido”, diz ele, apontando para o sucesso particular do TikTok em oferecer conteúdo curto.
“Os esportes precisam continuar a inovar em tudo, desde o formato de competição até elementos de produção como feeds verticais, conteúdo multitelas, localização personalizada, tecnologia, dados no estádio e interatividade com influenciadores – sendo o "Manningcast" de Peyton e Eli Manning (programa da ESPN, no qual os dois ex-jogadores comentam a rodada de futebol americano) um ótimo exemplo.”
Mas, como muitos outros com quem o The Guardian conversou, Beall também reconheceu o valor dos esportes que resistiram ao teste do tempo.
“Todos os esportes precisam estar cientes da supersaturação”, diz ele. “A Ryder Cup (competição bienal de golfe por equipes entre Europa e Estados Unidos), as Olimpíadas e o Lions Rugby (equipe que representa as Ilhas Britânicas desde 1888 em turnês de amistosos de rugby union pelo mundo, com jogadores do Reino Unido e da Irlanda) obtêm seu status ‘especial’ precisamente porque têm um valor de escassez que atrai um interesse significativo dos fãs em momentos importantes.”
Em outras palavras, alimente a galinha dos ovos de ouro – mas sem correr o risco de matá-la.
*Sean Ingle é um jornalista esportivo britânico. É atualmente o principal repórter esportivo e colunista do "The Guardian" e do "The Observer". Anteriormente, foi correspondente de atletismo do jornal e editor de esportes online.
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