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Entre a civilidade e a barbárie

Por Andréa Bruxellas

(pubicada no Blog do Leme - Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes - UERJ)


Com a proximidade da decisão da maior competição de futebol de clubes da América do Sul no estádio Monumental de Núñez, casa do River Plate, em Buenos Aires, os ânimos dos torcedores estão acirrados. No momento da escrita deste artigo, Botafogo e Atlético-MG estão na briga pelo título. Paralelamente à alegria e ansiedade pelo desfecho final proporcionadas pelas equipes competidoras, as repetidas manifestações de violência nesta e em outras competições importantes de futebol, suscitam uma reflexão acerca da origem desses comportamentos agressivos, que hoje vitimizam homens, adolescentes, e, cada vez mais frequentemente, também mulheres no universo do futebol regional e mundial.

Poucas horas antes da primeira partida entre Botafogo e Peñarol (23/10), pela semifinal da Libertadores, torcedores do clube uruguaio protagonizaram cenas de brutalidade explícita usando paus e pedras para atacar policiais e banhistas no Recreio dos Bandeirantes, zona oeste do Rio de Janeiro. No levantamento final do saldo da confusão generalizada teve lesão corporal, incêndio de ônibus, saques, desacato, rixa, injúria racial, etc.




Investigações preliminares apontam para o envolvimento de alguns dos uruguaios detidos no Rio com a principal torcida organizada do Peñarol, a Barra Amsterdam, que emitiu comunicado dizendo que os torcedores detidos foram vítimas de tortura e violência por parte da Polícia Civil, que repudiou as declarações.

No jogo de volta, em Montevidéu (30/10), o ônibus que transportava a delegação do Botafogo foi apedrejado. Eliminado no jogo de volta da semifinal, no estádio Centenário, o Peñarol poderá sofrer sanções na esfera desportiva. Além disso, dos mais de 200 uruguaios detidos, pelo menos 21 dos antes anônimos em meio à multidão, vão responder a processo judicial por crimes diversos, entre eles infração ao artigo 201 do Estatuto do Torcedor, que prevê penas aos torcedores que promovem tumultos, praticam ou incitam a violência. As penalidades previstas no artigo são aplicadas em dobro em casos de racismo ou de infrações cometidas contra as mulheres, sobre as quais falaremos mais adiante.


Foto: Gleison Baptista/TV Globo


O estatuto do torcedor, no entanto, tem se mostrado ineficaz para coibir infratores ou evitar confusões antes, durante e depois de jogos que mexem com a paixão de torcedores comuns e  organizados que, segundo Carlos Alberto Pimenta (2000) se distinguem pelas provocações aos times adversários e atos de vandalismo e depredação.

A violência entre torcidas organizadas não está desarticulada dos aspectos político, econômico e sociocultural vivenciados nas relações individuais e grupais na sociedade brasileira contemporânea. Consequentemente, o estilo de vida dos jovens não pode ser dissociado dos desdobramentos causados por esses traçados político-econômicos legitimados no “jogo” social. (PIMENTA, 2000, p. 122)

No domingo (27), o futebol brasileiro contabilizou mais vítimas da violência entre torcidas, desta vez envolvendo torcedores de organizadas do Palmeiras contra os do Cruzeiro. Nesse sentido, vale destacar o estudo do jornalista americano Bill Buford no livro “Entre os Vândalos: A multidão e a sedução da violência” (2010) que mostra o apelo exercido pela experiência da violência coletiva até mesmo entre pessoas esclarecidas. O autor analisa a possível diluição da identidade dos participantes dentro do contexto da multidão.


Foto: Reprodução Redes Sociais


Para Walter Benjamin (BENJAMIN, 1991) o homem se tornaria mais suspeito à medida em que sua subjetividade individual estivesse diluída em meio à multidão, tornando-o mais difícil de ser encontrado. Ou seja, segundo o  autor, a massa teria uma característica de asilo frente aos perseguidores.

Vale lembrar que a ideia de civilidade é construída na modernidade em oposição às de anormalidade e que a multidão é vista como uma ameaça ao autocontrole dos indivíduos que inseridos nesse contexto correriam o risco de cair no barbarismo. (ELIAS, 1993)

O espaço urbano nas grandes cidades europeias passa a ser identificado como um aglomerado de pessoas estranhas entre si, as massas, marca da metrópole moderna. E, nesse sentido, a história das multidões nas grandes cidades  é  escrita por suas “vítimas” e, desde então,  comumente associada ao medo.

Pelo mero fato de tomar parte em uma multidão organizada, um homem desce vários degraus na escala da civilização. Isolado, ele pode ser um indivíduo cultivado; em uma multidão é um bárbaro – isto é, uma criatura agindo por instinto. Ele possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade, e também o entusiasmo e heroísmo dos seres primitivos. (LE BON, 1954, p.130)

Muitas vezes, a própria mídia não contribui para elucidar ou mesmo problematizar de maneira um pouco mais aprofundada a questão colocando-a  dentro do nosso tempo social. O contexto de modificações presentes nos grandes centros urbanos afetam o comportamento de indivíduos plurais pertencentes a um sistema em que há um esvaziamento político do sujeito social.

No caso recente envolvendo torcedores do Peñarol, por exemplo, alguns órgãos da imprensa internacional optaram por ignorar os relatos de vandalismo para fazer uma abordagem do tema, ressaltando  a truculência e a repressão da polícia brasileira. Assim, a violência presente nas preocupações do homem contemporâneo, passa a ser tratada nos veículos de comunicação de forma cada vez mais policialesca e espetacularizada.

Segundo relatório “Violências e convivências no futebol. Ano 2024.”, projeto de extensão da UERJ,  a maioria dos casos de violência físicas ligadas ao futebol masculino profissional registrados em 2023 envolve torcedores de times diferentes (47%) e torcedores contra as forças de segurança (25%). Embora o Rio de Janeiro tenha sido apontado no relatório “Violências no futebol brasileiro” também desenvolvido pelo Observatório Social do Futebol da UERJ, baseado em ocorrências noticiadas pela imprensa em 2023, como o estado com mais casos de violências físicas no futebol, outros estados e até mesmo outros países constantemente também servem de palco para atos violentos. Em entrevista à Agência Brasil, a pesquisadora Raquel Sousa, uma das responsáveis pelo estudo, apontou que entre as razões para os casos de violência estarem mais presentes no estado do Rio de Janeiro estaria a maior atenção da mídia e a atuação repressiva das forças de segurança públicas e privadas.

De fato a violência no futebol e a atuação das torcidas organizadas são questões complexas. A Inglaterra, por exemplo, demorou a solucionar problemas ligados à cultura hooligan. Durante anos, grupos de torcedores de clubes ingleses protagonizaram confrontos entre si amedrontando e afastando os espectadores dos estádios. Em pesquisa realizada dentro do contexto do futebol inglês dos anos 1980, Buford (1992) associou a violência dos torcedores à exclusão social e à aversão à diferença.

A proibição da venda de álcool nos estádios ingleses, a criação de tribunais especiais para lidar com crimes relacionados ao futebol e a colaboração entre clubes e torcedores têm contribuído para a reduzir a incidência de casos. Em outubro deste ano a Women ‘s Professional Leagues Limited anunciou que a segunda divisão do futebol feminino da Inglaterra testará o consumo de álcool nas arquibancadas, o que indica que aos poucos as medidas mais restritivas de combate à violência podem ser flexibilizadas.

Para Murphy, Williams e Dunning (1994)  violência e  futebol estão associados desde os tempos mais remotos. No Brasil, a violência se fez presente nas relações conflituosas de classe e gênero desde a introdução do desporto. As desigualdades de gênero, inclusive, fizeram do futebol durante muitos anos um espaço de interdição para a mulher. Vinculada a um arquétipo feminino associado ao lar e à maternidade, ela foi durante anos vítima da divisão binária da sociedade.

Assim, a própria misoginia poderia estar no cerne das explicações para o aumento dos índices de violência doméstica em dias de jogos do Campeonato Brasileiro segundo a pesquisa “Violência Contra Mulheres e o Futebol” idealizada pelo Instituto Avon e encomendada ao   Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que analisou a violência no futebol como “um complexo fenômeno de comunicação de massa, de pertencimento e de reafirmação de valores que tangenciam o patriarcado”.

O recorte da pesquisa levou em conta uma base de dados contendo informações de todos os jogos do campeonato brasileiro da série A, entre 2015 e 2018, em cinco capitais brasileiras; Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Os números obtidos indicaram que nos dias em que o times da cidade jogam há um aumento no número de ameaças contra mulheres de 23,7% e de lesões corporais dolosas de 20,8%.

Estudos realizados no exterior também demonstraram um incremento da violência doméstica em dias de jogos. A compreensão do fenômeno no campo da sociologia do esporte, segundo a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, associa a violência a um processo que envolve aglomeração e interação social dentro de uma subcultura fortalecida pela construção social de uma identidade masculina, de virilidade e competitividade. Soma-se a isso fatores de risco como o consumo de drogas e bebidas alcoólicas.

Diante da complexidade do tema, fica evidente que pesquisas que apontem para essas dinâmicas em jogo são fundamentais. Assim como políticas públicas para garantir o bem-estar da população que gosta de acompanhar os jogos no estádio. A ação Feminicídio Zero – Nenhuma violência contra a mulher deve ser tolerada,  do Ministério das Mulheres, desenvolvida em parceria com a sociedade civil e os clubes de futebol, visa diminuir os casos de violência contra mulher através de campanhas contínuas de conscientização voltadas principalmente para os homens.


Foto: Botafogo


O Botafogo foi um dos clubes que assinaram a carta-compromisso de enfrentamento à violência contra a mulher. Engajado no objetivo de valorizar o público feminino no esporte e promover a igualdade de gênero, o clube alvinegro lançou o projeto #AHoraDelas, que tem como objetivo tornar as práticas de segurança e igualdade no Estádio Nilton Santos efetivas.


Foto: LibertadoresBR/Instagram


No próximo dia 30 de novembro, o clube alvinegro disputa a grande final da Copa Libertadores contra o Atlético- MG. Resta agora torcer para que a banalização do mal, retroalimentada pela espetacularização da violência na mídia não apague o brilho da decisão. Será a quarta vez nos últimos cinco anos que duas equipes brasileiras disputam o título mais cobiçado da América do Sul. Que vença a melhor dentro das quatro linhas e que essas linhas sejam cada vez mais delimitadoras de um espaço de celebração e respeito às diferenças.


Referências

BENJAMIN, Walter. A Paris do segundo império em Baudelaire. In:. KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1991.

BUFORD, B. Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência (Tradução Júlio Fischer). São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

ELIAS, Norbert. Do Controle social ao autocontrole. In: O Processo civilizador. (Formação do Estado e civilização). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.

LE BON, Gustave. Psicologia das multidões. Rio de Janeiro: F. Briguet; Cia. Editores, 1954.

MURPHY, P.; WILLIAMS, J. e DUNNING, E. O futebol no banco dos réus: violência dos espectadores num desporto em mudança (Tradução de Raul Sousa Machado). Oeiras/Portugal, Celta Editora, 1994.

PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. Violência entre torcidas organizadas no futebol. São Paulo, v 14, no 2, 2000.

Futebol e violência contra a mulher [livro eletrônico] / coordenação Daniel Cerqueira. 1. ed. São Paulo : Fórum Brasileiro de Segurança Pública : Instituto Avon, 2022.

Links

Futebol e violência contra mulher | Fórum de segurança



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