Na tarde do último domingo (24) o São Paulo se sagrou campeão da Copa do Brasil ao empatar com o Flamengo em 1 a 1. No entanto, para além da inédita conquista do tricolor paulista na competição, alguns números do mata-mata nacional chamaram a atenção. O São Paulo bateu, pelo segundo ano consecutivo, o recorde de público da temporada com um público de 63.077 pessoas na final. Ao todo foram vendidos 1.323.784 ingressos para a decisão. No primeiro jogo das finais da Copa do Brasil, disputado no dia 17 de setembro, no Maracanã, graças aos valores desembolsados pelos 60.390 torcedores pagantes de um universo de 67.350 presentes, foi batido o recorde nacional de renda em partidas de futebol, R$ 26,343.300 milhões.
A renda milionária só foi possível porque os preços dos bilhetes variaram entre R$ 400 e R$ 4.500, com um ticket médio de R$ 391,14. O aumento dos valores dos ingressos em relação à decisão de 2022 contra o Corinthians chegou a 85% em alguns setores. Diante de números tão expressivos e levando-se em conta também os valores cobrados pelas entradas para os jogos do Campeonato Brasileiro, pergunta-se: O futebol está deixando de ser um lazer popular no Brasil? O jogo da bola com os pés, que deu cinco títulos mundiais e dois olímpicos ao país, está voltando a ser uma modalidade das elites, e não mais do povo, que tanto o ama? A modernidade trouxe o futebol gourmet, milionário e elitizado?
Foto: Cris Mattos Divulgação/CBF
Tais questões começam a chamar a atenção de pessoas que trabalham e vivem ao redor do que poderíamos chamar de futebolverso, isto é, da série de atividades que circundam este esporte. A preocupação de especialistas em marketing, sociólogos, pesquisadores, dirigentes, jornalistas e obviamente torcedores é a de que o esporte possa estar perdendo sua característica de reunir pessoas de diferentes classes e origens nas arquibancadas. Ou mesmo adquirindo as características elitistas dos primórdios.
Quando o futebol foi trazido para o país no fim do século 19 - por pioneiros como Charles Miller, Oscar Cox, Zuza Ferreira e outros em diferentes estados - os primeiros atletas eram jovens brancos, oriundos das classes mais abastadas do país e não raramente haviam estudado na Europa. Nas arquibancadas, nos primeiros campeonatos, lá pelos anos 1900, estavam seus parentes, amigos e pessoas dos mesmos estratos sociais. O pesquisador Irlan Simões, no entanto, não gosta dessas comparações anacrônicas.
"São configurações muito diferentes. O futebol elitizado dos primórdios era tão representativo para a sociedade como um todo como o chá das cinco. Não tinha impacto nenhum na vida das pessoas. Hoje a gente está falando de uma indústria, de um entretenimento gigantesco com mais de 120 anos de história, com gerações e gerações que vão transmitindo esse gosto por um clube de futebol, o gosto por um estádio", explica.
A preocupação do especialista em marketing esportivo e diretor da consultoria Sports Value, Amir Somoggi, é que esse gosto esteja ficando de tal forma refinado que os estádios e arenas do Brasil reservem poucos ou nenhum espaço para torcedores de classes sociais mais baixas. É como se os coliseus contemporâneos do futebol não tivessem sido sequer projetados para abrigar operários, negros, favelados ou desempregados. O especialista acredita que o processo de elitização seja anterior à Copa de 2014, mas tenha se intensificado nos dias atuais. Para ele, o próprio sócio-torcedor já seria uma forma de elitização.
"Um sócio-torcedor gasta algo em torno de R$300 ao mês. Não é só com o jogo, mas inclui também o transporte e a alimentação. Fica parecendo algo como um show do Paul McCartney, o Rock in Rio, o The Town, que são eventos para brancos.” Para Somoggi, embora polêmicas e frequentemente acusadas de atos violentos, as torcidas organizadas são uma forma de resistência popular neste novo futebol classe A.
Somoggi acredita que as torcidas organizadas sejam o último bastião do futebol popular. "Sinceramente, sem elas, não haveria mais negros nem pobres nos estádios. No caso brasileiro, acredito que dois clubes tenham mais condições de erguer a bandeira da resistência à atual elitização. O Vasco, por sua história, e o Bahia, por sua localização (um estado com alto percentual de população negra). O Vasco poderia fazer a internacionalização de sua marca com a luta antirracista, muito mais do que com seus gols e títulos. Um clube vai além das quatro linhas. É sociedade. É ambiente. Vai além do resultado dos jogos”.
Irlan Simões lembra que o sócio-torcedor nasceu com a lógica de esvaziar as torcidas organizadas, mas acabou se tornando uma alternativa para solidificar a ligação com o clube sem a necessidade de se tornar sócio e pagar uma mensalidade alta.
"O público dos estádios precisava de algum tipo de mecanismo de aderência. Antigamente eram os carnês. Você comprava os ingressos da temporada inteira e conseguia um desconto no custo geral do carnê. O sócio-torcedor tem muitas potencialidades. O problema é como se usa isso. Por exemplo, quando você tem um estádio grande e cria uma espécie de sócio-torcedor popular mas restringe esse setor popular a 10% do estádio, o que você está fazendo não é popularizar o seu estádio, mas "gateficar". Porque você vai restringir o preço acessível apenas àquele setor muito pequeno. Em todos os outros setores você vai explorar o torcedor com preços altos. Tem esse paradoxo. E, considerando a média da mentalidade de quem controla os clubes brasileiros, o sócio-torcedor tende a atrapalhar mais do que ajudar", explica.
Os grandes jogos e as modernas arenas geram quantias elevadas e atraem grandes públicos. Entretanto, fica a dúvida se esses grandes públicos são integrantes apenas das classes A e B ou ainda incluem trabalhadores e operários, como nos tempos da velha Geral do Maracanã (onde os torcedores assistiam aos jogos bem de perto, mas de pé), extinta em 2005, numa das intermináveis reformas do estádio.
Para o sociólogo Ronaldo Helal, um dos pioneiros nos estudos de sociologia do esporte, existe um certo romantismo em torno da geral por parte dos que nunca foram geraldinos e tampouco conheceram as dores dos que estavam naquela localização do estádio. Sem ser saudosista, Helal reconhece as qualidades da acústica desse Maracanã mais intimista, que gera novas memórias e afetos aos atuais frequentadores; homens, mulheres, crianças, famílias inteiras.
Irlan Simões ressalta, no entanto, que não foram as novas arenas que determinaram as tão alardeadas mudanças no perfil dos frequentadores dos estádios. "Isso é uma balela completa. É uma mudança geracional. Certos comportamentos comuns nos estádios se tornaram intoleráveis. Se você tem uma transformação muito mais ampla de mulheres tomando espaço na sociedade, isso também vai garantir que o estádio seja ocupado por mais mulheres e o comportamento da média dos torcedores não seja mais tão agressivo ou misógino como era nos anos 90, começo dos anos 2000. As transformações sociais são muito mais amplas. Na mentalidade dessa turma, se você está num estádio antigo é um animal, se está dentro de uma arena, vira um gentleman. Esses estádios têm um custo de manutenção alto e a gente não tem as condições básicas de sustentar esse modelo. Nós temos estádios padrão Alemanha, mas não salários padrão Alemanha."
Em termos de arrecadação, trata-se de uma opção: ter um estádio mais acessível com um público grande pagando menos ou obter uma renda muito parecida, restringindo o número de torcedores e colocando os ingressos mais caros.
Helal acredita que o medo excessivo da violência contribua para que menos ingressos sejam disponibilizados.
"Lembro que no final da década de 80 fui entrevistar o jornalista esportivo Sandro Moreyra e ele comentou que aquela realidade de estádios com mais de 100 mil pagantes ia acabar. Na época achei muito doido o que ele falou", conta. Helal, que durante muitos anos foi frequentador do Maracanã, lembra com saudades do tempo em que as torcidas entravam juntas no estádio e, quando o time perdia, o torcedor saía um pouco antes do fim do jogo para fugir das gozações. Professor da Uerj há 37 anos, hoje já sabe que nos dias de jogos com mais de 30 mil pagantes no Maracanã precisa transferir as aulas para o formato online porque os alunos não conseguem chegar à universidade tamanho o esquema de proteção e desvio do trânsito da polícia.
Futebol europeu opta por fidelizar torcedor e arrecadar menos
Os clubes europeus já chegaram a conclusão de que os torcedores não devem ser prejudicados já que o patrocínio e os direitos de transmissão pagos pela televisão são mais representativos para o clube do que a receita vinda dos estádios, que passa pouco de 20% do faturamento total, o que não chega a ser determinante para o planejamento financeiro da temporada. No Brasil, alguns clubes conseguem com o "match day", receita vinda da venda de ingressos e produtos licenciados pelo clube, obter cerca de 30% do faturamento, mas, para grande maioria, ela também gira em torno dos 20%.
''No Brasil esse debate não se estabeleceu. Na Europa você tem organizações de torcedores e a sociedade civil impõe que esse debate seja colocado. Aí eles conseguem limitar preço de ingresso. Na Europa, muitos países já têm teto de preço de ingresso a ser cobrado inclusive do torcedor visitante", ressalta Irlan Simões.
O pesquisador defende que os torcedores se organizem em coletivos para ganhar voz e poder de atuação. Afinal, só quem entende de futebol e de como é a vida do torcedor, é o próprio torcedor.
"A autoridade não sabe, o Ministério Público não sabe, dirigente de clube nunca pisa na arquibancada, a polícia militar só entra lá para bater. Então, tudo isso é resultado da ausência de voz do torcedor. Eu acho que é necessário que os torcedores estejam organizados avaliando o que acontece no futebol brasileiro, denunciando o que está errado, impulsionando e pautando essa agenda ao ponto de garantir que o debate público seja tão consolidado que nenhum presidente ou dono de clube tenha coragem de dizer que os ingressos podem ser mais caros. Isso é disputa política", explica.
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