top of page

A camisa rubra e a desintegração da “identidade amarelinha”


Por Andréa Bruxellas e Cláudio Nogueira


O conceito de identidade, entendido como a construção social de uma pessoa, grupo ou objeto, é amplo e sofre a influência de diversos fatores como a cultura, a história e o contexto social. Trata-se de um processo contínuo de construção e transformação.  Aspectos como data de aniversário, religião, time de futebol, gosto por determinado tipo de música ou comida, dão pistas, por exemplo, de quem somos, da nossa identidade. Um clube, uma seleção ou equipe esportiva também têm suas identidades que incluem nome, data de fundação, principais títulos, estádios ou arenas, e, claro, os escudos e as cores de seus uniformes.

E, nesse aspecto particular, o da identidade visual, recentemente uma polêmica relativa à suposta escolha de um segundo uniforme para a seleção brasileira utilizar na próxima Copa do Mundo masculina de Futebol, em 2026, no Canadá, EUA e México gerou um debate acalorado. O problema todo foi a cor vermelha que, para surpresa da mídia e da torcida, não consta – como se sabe – da bandeira brasileira. Se assim ficar decidido, será a primeira vez na história que a seleção brasileira usará uma cor diferente de  sua bandeira em um uniforme reserva para a Copa. A camisa, que será produzida pela marca Jordan, uma subsidiária da Nike, tem lançamento previsto para março de 2026.


ree

Segundo o site inglês Footyheadlines.com (FH), especializado em uniformes de times de futebol, a empresa americana de material esportivo tem a intenção de revolucionar o mercado no ano que vem.

A possibilidade de adoção da cor rubra no uniforme brasileiro caiu como uma bomba e repercutiu como uma espécie de sacrilégio esportivo. Algo assim como  se alguém tentasse quebrar a  imagem do santo padroeiro de uma igreja ou invadisse um templo, xingando todos os presentes. Não se trata de um exagero. Para quem ama a seleção brasileira – conhecida como seleção Canarinho, pelo menos a partir de 1958 – a camisa número 1, a Amarelinha, é sagrada. Alguns dos melhores jogadores da história do futebol brasileiro vestiram a camisa nas campanhas dos cinco títulos mundiais, em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. A segunda camisa, a azul, pode não ser tão venerada quanto a amarela, mas vestiu momentos gloriosos como o da final de 1958, na Suécia, quando a seleção brasileira venceu a dona da casa por 5 a 2.


ree

A circunstância que levou à adoção do azul foi casual. Na época, o Brasil havia feito todas as partidas usando um jogo de camisas amarelo, mas como essa era a mesma cor do fardamento sueco, caberia ao Brasil mudar o uniforme na final. Por um misto de acaso e providência, o chefe da delegação, Paulo Machado de Carvalho, procurou em lojas de Estocolmo um jogo de camisas em cor alternativa. Reza a lenda que ele havia visto em seu quarto uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida, cujo manto é azul. Como a cor também aparece na bandeira nacional, as camisas alternativas seriam dessa coloração. Ao reencontrar os jogadores e mostrar as camisas azuis, Carvalho lhes garantiu que o Brasil não teria azar, mas seria campeão, porque o azul era o mesmo do manto da cor da santa padroeira do Brasil. O futebol perfeito e a goleada histórica entronizaram o azul na gloriosa história da seleção.


ree

Portanto, se para outras equipes nacionais há muita diferença no que diz respeito à relevância do primeiro e do segundo uniformes, no caso do Brasil, o alternativo também tem muita história. Soma-se a isso o fato de o vermelho não ser uma das cores nacionais, o que torna bem compreensível a recusa a essa tonalidade para representar o Brasil. Outro ponto que causou estranheza foi o fato do logotipo no uniforme vermelho ser o da Jordan, que remete não ao futebol mas ao gênio do basquete norte-americano Michael Jordan.

Galvão Bueno, icônico locutor de jogos da seleção brasileira em Copas do Mundo – além dos títulos de Nelson Piquet e Ayrton Senna na F-1 – se pronunciou sobre a polêmica no programa “Galvão e Amigos”, na Rede Bandeirantes,  ressaltando que a  história do futebol brasileiro é muito séria, rica em momentos difíceis e reúne muitas conquistas. 

“Eu transmiti 52 jogos do Brasil. Então, eu acho que tenho algum direito de falar”, comentou o narrador lembrando também  que o estatuto  da CBF de 2017 (capítulo III, artigo 13, inciso III) determina que a seleção brasileira só poderá usar uniformes com as cores existentes no escudo da entidade, o azul, o amarelo, o verde e o branco, as mesmas da bandeira nacional.

“O que tem isso a ver com a Seleção Brasileira? É uma ofensa sem tamanho! O que tem isso a ver com a história do futebol brasileiro? Eu tô muitíssimo na bronca!”, ressaltou o locutor esportivo durante o programa. 

Com outras palavras, Galvão disse que o signo da “amarelinha” não teria nenhum sentido se a história não tivesse atribuído a ele um significado. Ela, portanto, seria uma  representante legítima do futebol pentacampeão do mundo.

As argumentações de Galvão remetem a conceitos como os de identidade nacional e de tradições de uma comunidade local ou nacional. Temas que  foram objetos de estudo de pensadores como o francês Pierre Bourdieu e o britânico-jamaicano Stuart Hall, ambos sociólogos e analistas de temas da contemporaneidade.  De acordo com Bourdieu, o conceito de identidade resulta de três outros conceitos: habitus, campo e  capital. Em poucas palavras, o habitus molda a maneira como os indivíduos percebem o mundo e as suas próprias posições sociais, e o campo define as regras e as relações de poder que se aplicam à sua identidade. Já o capital influencia a posição e as oportunidades de cada indivíduo no campo, e também a maneira como ele é percebido e reconhecido pelos outros. 

Hall, por sua vez,  argumentava em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade”, que as culturas nacionais são comunidades imaginadas, que produzem sentidos e constroem identidades para a ideia de nação. Tais sentidos estão contidos não só nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam o seu presente com o seu passado, mas, também, nas imagens que dela são construídas. O autor defende que não nascemos com uma identidade nacional pré-definida.

As culturas nacionais se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Pensamos nesse tipo de cultura como se fosse parte de nossa natureza essencial. Porém as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior das representações (HALL, 2006, p.59).

A “desintegração das identidades nacionais” , isto é, o enfraquecimento dos laços que antes uniam os indivíduos a uma nação, segundo o autor teria gerado identidades múltiplas e mutáveis, que questionam a noção de uma identidade nacional fixa e essencial.  Nesse sentido,  o fato da empresa que assina o uniforme da seleção brasileira criar produtos para uma representação nacional que não se baseiam nas cores tradicionais desse mesmo país poderia refletir essa fragmentação das identidades nacionais.

Assim, a identidade visual da seleção passaria a ser híbrida, e portanto, independente da identidade oficial brasileira. A seleção poderia vestir um uniforme rubro, embora essa cor não faça parte dos símbolos oficiais do país. Ainda conforme o pensamento de Hall, a identidade cultural na pós-modernidade tem sua ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente, na diferença e no pluralismo cultural.

“A globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e ‘fechadas’ de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas”, (HALL, 2006, p.87).

Feito esse parêntese sociológico, no caso da polêmica do uniforme brasileiro, houve quem vinculasse a iniciativa da Nike ao racha político do país no momento. Segundo este ponto de vista, a Nike gostaria de agradar o governo do PT e seus apoiadores, que usam o vermelho na bandeira do partido; ao passo que os apoiadores da oposição vêm usando a camisa amarela como um símbolo de patriotismo.  

Contra tal argumento baseado na política, parecem existir duas situações. A mesma fornecedora de material esportivo, também segundo o Footy Headlines (FH), pretende produzir um uniforme 2 em verde menta, preto e amarelo para  a França, cuja bandeira é azul, branca e vermelha. De onde viria, então, a ideia de utilizar essa combinação tão diferente para os jogadores da pátria da Liberdade (azul), Igualdade (branco) e Fraternidade (vermelho)?

Ainda conforme o FH, a ideia seria homenagear a Estátua da Liberdade, que é verde, e foi oferecida aos Estados Unidos como um presente da República Francesa em 1886. Como os Estados Unidos será um dos países-sede da próxima Copa do Mundo, o segundo uniforme faria uma nova homenagem aos norte-americanos. Vale lembrar que o uniforme da seleção francesa é conhecido por “Le Bleu” (o azul), cor predominante da camisa e dos uniformes esportivos franceses e, atualmente, o uniforme 2 da seleção francesa é branco. Sobre a influência da cultura norte-americana no território global, Lipovetsky ressalta que

O que é vendido pelos americanos é menos americano do que mundial, podendo ser visto e apreciado pelos diversos públicos do mundo inteiro. E o público mundial não consome fundamentalmente o imaginário americano; consome o espetacular, ação, sexo, violência, beleza, emoção (LIPOVETSKY, 2011, p.124)

Outra proposta da Nike,  conforme o FH,  é produzir um uniforme cor de rosa para a Nigéria, cuja bandeira é verde e branca. O rosa, curiosamente, só aparece em duas bandeiras, mas em pequenas referências: um leão na bandeira da Espanha, e  em flores na bandeira mexicana. Verdade que não ficou claro o porquê do rosa na segunda camisa nigeriana, que normalmente é branca.  Se a Nike está disposta a mudar radicalmente os segundos uniformes de Brasil, França e Nigéria, com lançamentos previstos para março de 2026  – e possivelmente de outras equipes nacionais com as quais  têm contrato –  é de pensar que haja um motivo mais abrangente do que a tentativa de agradar uma facção política do Brasil. No caso, quais os motivos para alterar os modelos franceses e nigerianos?

Tudo indica que a motivação principal da empresa seja aumentar o lucro. Considerada a marca de roupas mais valiosa do mundo em 2016, a Nike parece determinada a revolucionar a indústria global de material esportivo, mantendo-se fiel às cores tradicionais das seleções, mas inovando no que diz respeito ao uniforme 2.  

Para Bourdieu, em consonância com o pensamento de Hall, no processo de reconstrução, as identidades nacionais ficariam abaixo de outras identidades. Propondo um entendimento com uma estrutura análoga ao pensamento de Bourdieu, nesse caso específico poderia-se supor que a identidade da fornecedora de material esportivo, investida de poder suficiente para aplicar novas identidades visuais aos uniformes de Brasil, França e Nigéria, se sobreporia ao das identidades nacionais dos respectivos países. O que explicaria o vermelho para o Brasil; o  verde menta, o preto e o amarelo para os franceses; e o rosa para a Nigéria. 

Quando alguém compra uma camisa ou um calção de seu time ou seleção favorita; ou ainda um par de tênis, nem sempre se dá conta de que está consumindo produtos de uma poderosa indústria: a do material esportivo, que em 2023 movimentou a quantia de  US$ 202,64 bilhões (R$ 1,150 trilhão) e, até 2032,  tem a expectativa de alcançar os US$ 302,98 bilhões (R$ 1,713 trilhão), uma taxa de crescimento anual de 5,2%. Além dos uniformes iguais aos usados por atletas, atualmente está em ascensão o chamado athleisure, tendência de moda que rompe com as fronteiras entre o esportivo e o casual, misturando a funcionalidade e o conforto da roupa desportiva com a versatilidade do estilo casual e, assim,  ampliando a base de consumidores. 

Nike, Adidas, Under Armour e Puma são quatro das principais marcas que disputam espaço neste mercado. Em 2021, a Nike foi líder do mercado, com receitas de US$44,5 bilhões (R$251,7 bilhões), seguida pela Adidas com aproximadamente US$24 bilhões (R$135,7 bilhões). Naquele ano, em plena pandemia do Covid-19, o valor do mercado de vestuário esportivo nos EUA era de aproximadamente 103 bilhões de euros (R$660,2 bilhões).

Por isso, cada nova estratégia utilizada representa a possibilidade da conquista de mais uma fatia desse setor. Toda novidade faz diferença. Se para alguns torcedores brasileiros usar a camisa vermelha em uma partida oficial pode parecer uma heresia, esse modelo pode ser sucesso de vendas entre colecionadores que não misturam cor e patriotismo. Além disso, também poderá seduzir consumidores de outros países em que o futebol brasileiro também provoca paixões. 

A política inovadora da fábrica americana poderá abrir um precedente para que outras marcas de material esportivo passem a utilizar em uniformes de clubes e seleções cores diferentes das usadas atualmente. No futuro, as mudanças podem não só atingir as equipes nacionais como, também, as cores dos clubes de coração. 

Vale lembrar que a nota divulgada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não negou categoricamente o uso da cor alternativa, informando na prática que o novo modelo ainda estava em produção. 

“A entidade reafirma o compromisso com seu estatuto (os padrões nas cores amarelo tradicional e azul serão mantidos) e informa que a nova coleção de uniformes para o Mundial ainda será definida em conjunto com a Nike.”

Pela declaração da CBF, entende-se que já existe de antemão uma disposição de acolhimento do produto fabricado. Na sociologia de Bourdieu, “a interiorização do habitus reproduziria as estruturas de poder a partir dos critérios de hierarquização  sob pena de exclusão” (BOURDIEU, 1981, p.6).

Desta forma, na questão objetiva da seleção brasileira, a camisa vermelha poderá, sim, se tornar um objeto cult,  virar modismo ou, quem sabe, uma espécie de rebeldia que, em última análise, gerará ainda mais lucro para a fornecedora. Fenômenos semelhantes podem ocorrer com os uniformes alternativos de França, Nigéria ou outras equipes vestidas pela Nike. No mercado brasileiro, possivelmente muitos torcedores da seleção brasileira ainda terão uma certa resistência em aderir ao vermelho. Mas, levando-se em conta  a qualidade dos modelos e os artifícios utilizados pela Nike para alcançar a distinção, é bem possível que uma parcela mais jovem do mercado venha a torcer, sim, pela seleção Canarinho, vestida de vermelho.


Referências:

BOURDIEU, Pierre. “La représentation politique: éléments pour une théorie du champ politique”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 1981, p. 36-37: 3-24.

HALL, Stuart. A Identidade cultural na Pós-Modernidade. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2006.

LIPOVETSKY, Gilles. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.


Obs.: Esse texto foi publicado em 09 de setembro de 2025 no blog do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME), da UERJ- Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


 
 
 

Comentários


Contato  

Bruxellas Produções

Tel. +55 21 983740568

sportsm.bruxellas@gmail.com

Horário

Seg - Sexta 11:00 - 18:30

Saturday 11:00 - 17:00

Sunday 12:30 - 16:30 

 

Fale
com a gente:)

Obrigado(a)

bottom of page