A decisão do Mundial de Clubes da Fifa, em dezembro último, entre Fluminense e
Manchester City - vencida pelo clube inglês - em Jedá, na Arábia Saudita, representou mais uma pedra preciosa no tesouro acumulado por países de uma região pequena porém cada vez mais poderosa e influente no mundo esporte: o Oriente Médio, mais especificamente Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos e Catar.
Cada vez mais ricas, graças à força do petróleo, do gás natural e do mercado financeiro, tais nações vêm se notabilizando pelo forte investimento na indústria do esporte, seja comprando times expressivos do mercado europeu, como o Paris Saint Germain, pelo governo do Catar; o próprio City, por empresas de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, ou o Newcastle, por um consórcio saudita; ou promovendo grandes eventos, como a Copa do Mundo da Fifa-2022, no Qatar; o já citado Mundial de Clubes-2023, na Arábia Saudita; e provas dos Mundiais de Fórmula-1 e de Motovelocidade além de torneios de modalidades importantes, como tênis e iatismo.
Foto: Divulgacão
Outra expressiva forma de investimento é a contratação de craques de renome internacional para atuarem na Arábia Saudita, casos dos brasileiros Neymar e Firmino, do português Cristiano Ronaldo - com um contrato que atingiria os 400 milhões de euros ou pouco mais de R$ 2 bilhões por dois anos -, o francês Benzema e o senegalês Mané e de dezenas de jogadores para a Liga Profissional Saudita, a um custo estimado em US$ 2,3 bilhões (o equivalente a R$ 11,5 bilhões) por parte do Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita. A presença de 94 atletas de destaque internacional na Liga Saudita têm atraído as atenções de canais de TV de várias partes do mundo, que têm transmitido a competição, caso da brasileira Rede Bandeirantes.
O mesmo fundo saudita que apoia o futebol local investiu cerca de US$ 488 milhões (cerca de R$2,3 bilhões) em competições de e-sports, os esportes eletrônicos, também em crescimento na região. Clubes sauditas teriam investido quase US$1 bilhão (cerca de R$5 bilhões) na última janela de transferências do futebol no verão europeu.
Além de futebol, F-1, tênis, iatismo e e-sports, lutas como o boxe e o World Wrestling Entertainment, a WWE, uma modalidade americana diferenciada de luta livre, são esportes muito apreciados pelo público da região. Tanto assim que o WWE assinou importante contrato com o canal saudita Shahid para transmissão de suas lutas por streaming.
Aquela região conhecida em inglês como MENA (Middle East and North Africa, ou seja Oriente Médio e Norte da África) começou a crescer economicamente na década de 70, com o chamado choque do petróleo, que catapultou os preços do combustível e enriqueceu os países produtores como o quarteto já citado. A partir de meados dos anos 70 a comunidade esportiva começou a se aproximar do chamado "Mundo Árabe", em busca dos chamados "petrodólares". Jogadores e treinadores brasileiros e latino-americanos, por exemplo, começaram a trabalhar nesses países e em outros como o Kuwait.
Vale observar que naquela fase os pioneiros iam para os países árabes, que ainda não sediaram grandes eventos e seguem, de certa forma, esportivamente isolados. A partir dos começo dos anos 2000 o mundo do esporte começou a direcionar sua bússola para aquela região, tanto assim que em 2004 o Bahrein sediou o primeiro GP de F-1 da região. Atualmente, o Mumtalakat, um fundo desse país, é dono de 75% do Grupo McLaren, que controla a equipe homônima de F-1. Além disso, o atual presidente da Federação Internacional de Automobilismo (FIA) é o ex-piloto de ralis Mohammad bin Sulayem, natural dos Emirados Árabes Unidos.
Nas duas últimas décadas, vem sendo cada vez mais comum a realização de eventos esportivos no Catar, Bahrein, Emirados Árabes Unidos (nos dois principais emirados, os de Dubai e Abu Dhabi) e mais recentemente na Arábia Saudita, considerada um país mais "fechado" aos costumes ocidentais e aos direitos das mulheres e minorias, como a comunidade LGBTQIA+. De acordo com especialistas, esses países, ricos porém autocratas - nos quais os soberanos realmente governam, ao contrário de uma monarquia parlamentarista, como a Inglaterra -, passaram a considerar que o esporte seria o instrumento ideal para torná-los mais “simpáticos” ao resto do mundo. Tal processo de uso do esporte para limpeza da imagem de nações é chamado por especialistas de "sport washing ".
De acordo com Simon Chadwick, professor da Escola de Negócios Skema, de Paris, escritor e pesquisador da indústria global do esporte, o que podemos ver agora é uma intersecção entre geografia, política e economia moldando o esporte.
"O que os países estão tentando fazer é construir identidade, acumular poder, projetar este poder e exercer influência por meio do esporte", analisa o especialista, antes de apontar para um enfraquecimento econômico e político de antigas sedes da maioria dos eventos. "Numa época em que a Europa está lutando com dificuldades econômicas e questionando seu relacionamento com o esporte, outros países estão adotando um posicionamento diferente."
Aqui mesmo no Brasil, o fundo Mubadala, com sede nos Emirados Árabes Unidos, vem negociando com clubes a criação da Libra, uma futura liga brasileira de futebol, com investimentos iniciais da ordem de R$1,4 bilhão. Tais negociações seguem em andamento, envolvendo os times mais populares e vitoriosos do país. Como novo eldorado do esporte mundial, empresas do Oriente Médio estão investindo, inclusive, nas ligas de esportes mais importantes dos EUA. O Qatar Investment Authority, empresa pública catari, investiu US$ 200 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) na compra de um percentual significativo do conglomerado esportivo americano Leonsis Monumental, que controla o Washington Wizards (NBA); Washington Capitals (NHL, liga de hóquei); Washington Mystics (WNBA). Já o time de futebol do New York City FC, da MLS, equipe do jogador carioca Thales Magno, pertence ao xeque Mansour bin Zayed al-Nahyan, membro da família real de Abu Dhabi, dos Emirados Árabes Unidos.
Além disso, empresas do Oriente Médio são patrocinadoras de grandes ligas e megaeventos, como Aramco, da Arábia Saudita (F-1); Qatar Airways (NBA); Etihad Airways (MLS) e Emirates Airline (US Open de Tênis). Calcula-se que mais de US$4,5 bilhões (R$22,5 bilhões) de fundos sauditas, cataris, dos Emirados e do Bahrein estejam sendo investidos em diferentes iniciativas do esporte mundial.
Obviamente, o movimento desses países em direção ao esporte não visa apenas ao "sport washing". Países e conglomerados financeiros que já lidam com fortunas querem, sim, ganhar mais e mais dinheiro. O príncipe saudita Mohammed bin Salman anunciou em outubro que seu reino vai sediar a Copa do Mundo de e-sports de 2024 e que a indústria do esporte que, segundo as previsões vai elevar em 1,5% o PIB saudita, será uma prioridade no seu governo.
Antes disso, em setembro, em entrevista à Fox News, bin Salman contra-argumentou diante das acusações de prática de “sport washing”.
"Bem, se o 'sport washing’ fizer o meu PIB crescer em 1 por cento, continuaremos a praticá-lo. Eu não me preocupo com isso, enfatizou o príncipe, em relação a eventuais críticas. “Tenho 1% do meu PIB procedente do esporte. Então, quero mais 1,5%. Chamem isso do que quiserem. Vamos conseguir mais 1,5%".
Em entrevista recente, o presidente da FIFA, o italiano Gianni Infantino, contestou a mídia europeia que denuncia o “sport washing” por parte dos países do Oriente Médio. Para o dirigente, a Europa tem telhado de vidro:
“Pelo que nós europeus fizemos pelo mundo afora nos últimos três mil anos, deveríamos estar nos desculpando pelos próximos três mil anos, antes de começarmos a dar lições de moral.”
A tendência é de que até 2026 a indústria do esporte tenha um crescimento global de 3,3%, mas no Oriente Médio especificamente tal elevação será bem maior, na casa de 8,7%. Muito desse avanço se deve a uma série de megaeventos a serem realizados naquela região da Ásia. Afinal, os fãs de esporte residentes no Oriente Médio estarão com a agenda cheia nos próximos anos. Agora em janeiro de 2024, por exemplo, o Catar vai sediar a Copa da Ásia de Futebol (seleções), ainda relativa a 2023, e em fevereiro, Abu Dhabi terá o Mubadala Open de Tênis. Também em fevereiro, o Catar vai sediar o Mundial de Natação da FINA. No mesmo mês, no Bahrein, será realizada uma etapa do Circuito Mundial de Golfe, cuja última parada será em novembro, em Dubai. Esporte que primeiro se estabeleceu na região, a F-1 terá quatro GPs por lá: em março, no Bahrein e na Arábia Saudita; e as duas últimas corridas da temporada, ambas em dezembro, no Catar e em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.
Em 2030, o Catar vai ser sede dos Jogos Asiáticos, um evento poliesportivo semelhante aos Jogos Pan-Americanos. Já a Arabia Saudita é atualmente a única candidata a ser a sede da Copa do Mundo da Fifa de 2034. Depois do Mundial do Catar em 2022, uma edição na Arábia Saudita do maior torneio de futebol do planeta é algo bem provável de ser organizado, apesar das restrições religiosas e legais ao consumo de álcool no reino saudita. O maior sonho esportivo dos países do Oriente Médio, porém, está mais voltado para o futuro. E tal futuro está cada vez mais presente, graças não só ao dinheiro, mas à capacidade de organização dos governos e povos da região. Em Doha, no Catar, o governo do emir Tamim bin Hamad bin Khalifa Al-Thani não esconde o grande projeto catari e de todos os países vizinhos: o da realização da primeira edição das Olimpíadas num país árabe, em 2036. Para quem conhece aquele pequeno território, cuja área equivale à metade do estado brasileiro de Sergipe, nada parece mesmo impossível. Como se via em tapumes instalados ao redor de canteiros de obras na capital, já alguns anos antes da Copa do Mundo, “o Catar merece o melhor.” Assim, alguém duvida de que as Olimpíadas daqui a 12 anos poderão ocorrer naquele pequeno e ao mesmo tempo gigantesco país?
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