De Coubertin 1894 a Coventry 2025
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Por Ana Miragaya
Uma mulher foi eleita presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) depois de 131 anos de sua fundação. O que isso significa para o Movimento Olímpico? Para responder essa questão é necessário fazer uma pequena viagem no tempo. Was
Em 1894, o mundo era outro. O COI foi fundado na Sorbonne, em Paris, pelo barão francês Pierre de Coubertin (1863-1937), com seus próprios recursos. Havia na sala somente Coubertin e mais seis aristocratas do sexo masculino, representantes de Bohemia (República Tcheca), Inglaterra, Estados Unidos, França, Grécia, Rússia e Suécia. Coubertin apontou o grego DimítriosVikélas (1835-1908) como o primeiro presidente, com a certeza de que a primeira edição dos Jogos Olímpicos iria de fato acontecer em Atenas, com o aval do rei Jorge I (1845-1913). A administração de Vikélas durou em torno de dois anos, ou seja, até o final dos Jogos de 1896, quando Coubertin assumiu a presidência do COI, ficando 29 anos (até 1925), sendo o presidente que mais tempo ficou no cargo.
Importante lembrar que o COI inicialmente era uma instituição masculina, bastante pequena e restrita, não sendo muito conhecida. Não incluía mulheres. Coubertin esforçava-se muito para projetar o COI no mundo e aos poucos foi tendo sucesso, à medida que suas redes de contatos cresciam mundo afora, mais esportes foram sendo adicionados, mais Comitês Olímpicos Nacionais foram sendo incluídos, mais Federações Internacionais eram fundadas e passavam a fazer parte do nascente Movimento Olímpico, mais atletas amadores se interessavam em participar, mais países tinham representantes no COI e mais tecnologia divulgava notícias, inspirando credibilidade e compromisso. Mas todos dependiam do aval do COI para poder participar.
Porém, o COI somente veio a ter controle do Programa Olímpico a partir de 1912. Com isso, as mulheres atletas, que não haviam sido incluídas nos Jogos de 1896, foram convidadas pelo prefeito de Paris, a competir nos Jogos de 1900. A partir de então as esportistas passaram a figurar no Programa Olímpico, mas com grandes restrições de participação, mesmo tendo Coubertin e demais membros do COI contra a participação de mulheres nas provas olímpicas. Dessa forma era perpetuada a tradição de valores do século XIX, que consideravam a mulher como ser frágil, portanto, subalterna, segregada ao lar, em seus papéis de esposa, dona de casa e, sobretudo, procriadora, sem poder exercer seus direitos de cidadã na sociedade. Mulheres esportistas sofriam preconceito e eram discriminadas pela sociedade europeia da época.
No entanto, à medida que o tempo foi passando, as mulheres foram pressionando e aumentando sua participação nos esportes, principalmente, em decorrência também de sua luta para fazer parte da sociedade como cidadãs, com acesso ao voto, à educação e ao trabalho. As quadras, as piscinas, os campos e as pistas foram cada vez mais testemunhando as mulheres alcançando seu direito àigualdade de oportunidades no esporte, confirmado em 1978 pela UNESCO, em declaração que o acesso ao esporte e à atividade física é um direito fundamental a todos os seres humanos.
O processo de inclusão de mulheres atletas nos Jogos Olímpicos foi se desenvolvendo até que em Londres 2012, o COI permitiu que as mulheres competissem em todos os esportes durante os Jogos Olímpicos. Mas foi somente em 2024, em Paris, 128 anos depois da primeira edição dos Jogos, que o número de atletas femininas (50%) se equiparou ao número de atletas masculinos (50%), pela primeira vez na história. Isso ocorreu graças às cotas que foram distribuídas igualmente entre homens e mulheres.
No entanto, o progresso das mulheres em alcançar cargos administrativos e de poder dentro do COI não tinha a mesma visibilidade. Embora tenha havido progresso, ainda há muito trabalho a ser feito, pois de acordo com a ONU Mulheres e a Sport Integrity Global Alliance (SIGA), as mulheres hoje ocupam apenas 26,9% dos cargos executivos em Federações Esportivas Internacionais. Apenas três das 31 Federações Esportivas Internacionais têm mulheres como presidentes e apenas 24 dos 206 Comitês Olímpicos Nacionais são presididos por mulheres, ou seja, 11,65%.
Voltando à pós-gestão de Coubertin, os 100 anos seguintes à sua aposentadoria (em 1925) viram setepresidentes, também homens europeus, tomarem posse e conduzirem o COI: o belga Henri de Baillet-Latour (1925 - 1942); o sueco Johannes Sigfrid Edström (1946 - 1952); o americano Avery Brundage (1952 - 1972); o irlandês Lord Killanin (1972 - 1980); o espanhol Juan AntonioSamaranch (1980 – 2001); o belga Jacques Rogge (2001 –2013) e o alemão Thomas Bach (2013 - 2025). Este último, no próximo dia 23 de junho, Dia Olímpico (dia da fundação do COI), passará a presidência do cargo mais alto do esporte mundial à zimbabuana Kirsty Leigh Coventry Seward, nascida em 1983, para um período de oito anos. A 10ª presidência do COI, então, sai do controlede homens europeus e vai para o controle de uma mulher africana.

Dos sete candidatos à eleição para presidente em 2025, Coventry era a única mulher. Foi a eleição presidencial do COI mais aberta e difícil de prever em décadas, sem um favorito claro antes da votação. Muitos previram que uma maioria absoluta poderia levar várias rodadas de votação para ser garantida. Porém, já na primeira rodada, Kirsty Coventry recebeu 49 dos 97 votos possíveis, o que representa uma vitória tão retumbante quanto histórica, ocorrida em 20 de março de 2025, na 144ª Sessão do COI em Costa Navarino, na Grécia. Ela contou com o apoio do atual presidente e confirmou seu favoritismo entre os membros votantes do COI, muitos dos quais haviam sido nomeados na gestão Bach.
Coventry se tornou a primeira africana e a primeira mulher a assumir o papel mais poderoso e prestigioso do esporte. Além dela, somente mais uma mulher ousou se candidatar à presidência: a americana Anita De Franz, em 2001, obtendo somente nove votos. Por que a eleição de uma mulher ocorre apenas agora?
Mais uma vez retornamos à instituição do COI, fundado em fins do século XIX com base em valores da época, discriminatórios no que concerne a participação de mulheres em esportes competitivos, nos Jogos Olímpicos, em funções executivas de empresas e, também, na administração do próprio COI. Esses valores conservadores, não condizentes com a inclusão da mulher no esporte e em cargos executivos, permaneceram durante muitas décadas, mas começaram a arrefecer e a mudar à medida que as mulheres atingiam pontos de poder na sociedade, consolidando posições que pressionavam por igualdade de oportunidades nos esportes, nos Jogos e nas posições de comando.
Em termos de equilíbrio de gênero em seu nível de governança, é relevante destacar que o COI tem se esforçado para aumentar o que foi uma recomendação fundamental da Agenda Olímpica 2020, lançada em 2014, e da Agenda Olímpica 2020+5, lançada em 2021, ambas publicadas durante a administração do atual presidente, Thomas Bach, que teve como objetivo principal modernizar o Movimento Olímpico. Prova recente disso ocorreu em 2022, quando Bach nomeou um número igual de mulheres e homens para cargos em comissões do COI, contribuindo para o objetivo mais amplo de promover a igualdade de gênero e a inclusão em todo o movimento esportivo. Isso representa um marco histórico para uma instituição que levou 87 anos para eleger uma mulher membro do COI. A venezuelana Flor Isava Fonseca e a finlandesa Pirjo Häggman foram eleitas em 1981,membros do COI, que ainda hoje não tem paridade de gênero entre seus membros.
Essencial então mencionar que a Carta Olímpica aponta que a missão do COI, como líder do Movimento Olímpico, é promover o Olimpismo em todo o mundo. Um dos papeis do COI descritos na página 13 da edição de 2025 é justamente incentivar e apoiar a promoção das mulheres no esporte em todos os níveis e em todas as estruturas, com vista à implementação do princípio da igualdade entre homens e mulheres. Essa atribuição somente apareceu na edição de 1996, justamente após a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, China, de 4 a 15 de setembro de 1995. Esse evento significativo na luta global pela igualdade de gênero reuniu 189 representantes governamentais e inúmeras ativistas, organizações e agências da ONU. A conferência culminou na adoção da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, um documento político global fundamental sobre igualdade de gênero.
Embora tenha havido progresso ao longo das últimas duas décadas, ainda há muito trabalho a ser feito. De acordo com a ONU Mulheres e a Sport Integrity Global Alliance, as mulheres ocupam apenas 26,9% dos cargos executivos em federações esportivas internacionais. Apenas 3 das 31 Federações Esportivas Internacionais têm mulheres como presidentes e apenas 24 dos 206 Comitês Olímpicos Nacionais são presididos por mulheres, ou seja, 11,65%.
Apesar de ser a segunda pessoa mais jovem a ocupar a presidência do COI (o mais jovem foi Coubertin aos 33 anos, em 1896), cabe salientar que Kirsty Coventry tem extenso currículo, bastante qualificado, no esporte competitivo (natação) com impressionantes sete medalhas olímpicas, na administração esportiva de seu país e,especialmente, em cargos de administração do COI, além de servir como Ministra do Esporte do Zimbábue durante quase sete anos. Observa-se também que sua formação, talentos, valores e juventude também possam vir a ajudaro COI a projetar uma imagem vanguardista e diversa num momento em que tenta garantir que os Jogos Olímpicos continuem interessantes e chamativos para os mais jovens.
Kirsty Coventry significa muito para o esporte e para o COI, que considera sua vitória um marco para a igualdade de gênero no Movimento Olímpico, pois ela se soma ao legado de Bach de promover a paridade de gênero dentro do COI. Ela é uma pioneira, não só na África ou no Zimbábue, mas no mundo esportivo e olímpico. E como tal, certamente será fonte de inspiração para muitas mulheres e meninas que sonham ocupar cargos administrativos e de poder. Como ela mesma diz: “as mulheres estão prontas para liderar”, acrescentando em seu discurso de vitória: “Espero que esta votação sirva de inspiração para muitas pessoas. Tetos de vidro foram quebrados hoje, e estou plenamente ciente das minhas responsabilidades como modelo. O esporte tem um poder incomparável de unir, inspirar e criar oportunidades para todos, e estou comprometida em garantir que aproveitemos esse poder ao máximo". Assim sendo, aascensão de Coventry à presidência incentiva maior diversidade e inclusão na governança esportiva global.
Com base em suas declarações à mídia, de uma forma geral, a visão de Coventry parece ser a de restabelecer os Jogos Olímpicos como um porto seguro para a diversidade e a inclusão, mas com unidade, de forma a garantir que os Jogos sejam efetivamente para todas e todos, sem discriminar sua origem, país ou local de nascimento. Se assim ocorrer, esse compromisso da nova presidente em impulsionar o esporte como um elo universal significa um momento crucial na história do COI. Apesar dos desafios que encontrará pela frente, os planos de Kirsty Coventry para capacitar atletas e promover a equidade social estão prontos para revitalizar o espírito olímpico com foco no feminismo e na igualdade de gênero, bandeira essa dos Jogos de 2024 e de sua própria candidatura, que se tornou vitoriosa.
De acordo com a BBC, Coventry deverá assumir a presidência do COI num período crítico para o Movimento Olímpico, com vários desafios pela frente. Ela terá que lidar com um cenário geopolítico complexo e tenso, que inclui a potencial reintegração da Rússia e da Bielorrússia, a construção de um relacionamento com o recém-empossado presidente dos Estados Unidos, além de ter que lidar com questões como elegibilidade de gênero, mudanças climáticas e doping, e sobretudo, garantir que os Jogos Olímpicos permaneçam relevantes no futuro e atrativos para a população mundial, especialmente para os jovens.
Com base nas falas de Coventry, a Revista Forbes destaca que Coventry tem uma visão pautada em objetivos corajosos, que podem confrontar os desafios complexos do século XXI e fortalecer o Movimento Olímpico. São eles: (1) aproveitar o poder do esporte como uma linguagem universal unindo comunidades diversas e inspirando mudanças, aprimorando o papel do esporte como catalisador para a saúde, a educação e a justiça social, incluindo a promoção de iniciativas que estimulem a unidade e a resiliência; (2) maximizar a colaboração e o engajamento, promovendo a transparência e incentivando a participação, já que progresso implica emdiálogo ativo de forma que todos os envolvidos se sintam ouvidos e valorizados, especialmente fortalecendo a conexão entre atletas, Comitês Olímpicos Nacionais e a comunidade olímpica em geral; (3) para garantir que o Movimento Olímpico continue a prosperar tanto econômica quanto culturalmente, criar e fortalecer parcerias para crescimento mútuo entre patrocinadores, veículos de comunicação e governos, ou seja, no mundo interconectado de hoje, nenhum país ou organização pode agir isoladamente; (4) defender e priorizar o desenvolvimento sustentável, reconhecendo os desafios globais urgentes, integrando práticas ecologicamente corretas no planejamento e na execução de todos os eventos olímpicos para deixar um legado positivo para as gerações futuras; (5) promover credibilidade e confiança, em um momento caracterizado pelo ceticismo em relação às instituições, de forma a buscar reforçar os valores de transparência, responsabilidade e integridade em toda a organização, garantindo que a marca olímpica permaneça sinônimo de excelência e justiça.
O triunfo histórico de Coventry é um momento marcante e bastante significativo para o Movimento Olímpico e para o esporte mundial, um momento inovador para um mundo que ainda precisa aprender a lidar melhor com a diversidade e aceitar a mulher em cargos executivos de poder e de gestão. O futuro da liderança no esporte olímpico está nas mãos de uma mulher, que muito as usou com coragem, determinação, sucesso e resiliência na conquista de sua trajetória marcante e significativa nas piscinas e nos cargos administrativos que ocupou. Agora é só acompanhar seu desempenho e torcer para que seus ideais e objetivos sejam materializados de forma olímpica.
FONTES
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