Por Ana Miragaya
Para conhecer essa história, vamos viajar no tempo aos Jogos Olímpicos de 1896, realizados em Atenas, sob o comando do grego Dimítrius Vikelas (1835-1908). Ele foi o primeiro presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), de 1894 a 1896, designado pelo fundador, o barão francês Pierre de Coubertin (1863-1937).
O povo grego aceitou e aprovou entusiasticamente a ideia dos Jogos, exatamente num período em que a Grécia passava por uma série de problemas políticos e financeiros, que incluíam até mesmo a falência. A falta de experiência do Comitê Organizador, que teve menos de dois anos para planejar e estruturar um empreendimento tão novo, quase causou seu fracasso. Se não fosse a experência em gestão de Coubertin, os Jogos Olímpicos não teriam acontecido.
Naquela época, os gregos usavam o calendário Juliano em paralelo ao calendário usado no Ocidente, o Gregoriano, 12 dias à frente do Juliano. No calendário Juliano, os Jogos ocorreram de 25 de março a 3 de abril, ou de 6 a 15 de abril, no calendário Gregoriano. Isso pode ter confundido e atrasado a chegada dos participantes. Além do problema de datas, a publicidade dos Jogos, modo de convocar os competidores, deixou a desejar. Nem os atletas de elite souberam da existência dos Jogos. Ao todo competiram 241 atletas masculinos de 14 países, sendo 169 gregos.
O calendário e a escassa propaganda, segundo pesquisadores, pode ter sido a razão da não participação de esportistas mulheres nos primeiros Jogos Olímpicos. Naquele tempo não havia tradição de mulheres no esporte competitivo devido ao contexto cultural ocidental, preconceituoso e discriminatório contra a mulher. Mesmo assim, no final do século XIX, alguns países europeus já tinham mulheres competindo em alguns esportes. As organizações esportivas femininas estavam apenas começando a aparecer e essas mulheres ainda não eram visíveis aos olhos do público.
O Programa dos Jogos Olímpicos de 1896, com todas as suas regras e regulamentos, não tinha nenhum artigo específico que proibisse ou excluísse as mulheres atletas, apesar de Coubertin ter se posicionado diversas vezes em seus escritos contra a participação feminina. A ausência de menção às mulheres atletas nas regras talvez tenha sido porque nem Coubertin e nem os membros do COI nunca imaginaram que alguma mulher fosse ter a iniciativa de se inscrever para competir nos Jogos. Não seria natural para aquele período em que o esporte era considerado território masculino. Tanto para Coubertin como para a sociedade como um todo, homens eram fortes e mulheres eram fracas. Homens eram superiores e mulheres eram inferiores por não terem nem a altura nem a força física masculina. No entanto, se realmente pensou assim, ele errou.
Houve, sim, uma mulher que tentou participar da primeira maratona olímpica, em 29 de março de 1896 (10 de abril no Calendário Gregoriano). O fato foi atestado pelos jornais da época, especialmente os gregos. Isso foi relatado, em 1997, pelo pesquisador grego Athanasios Tarasouleas com o objetivo de investigar a veracidade de rumores e boatos que se propagaram ao longo do século XX de que uma mulher havia de fato tentado fazer sua inscrição para correr aquela prova tão relevante.
Essa mulher era a grega Stamata Revithi e tinha em torno de 30 anos de idade. Uma mulher comum, loura, magra, com olhos grandes e pele já enrugada, aparentando ser mais velha do que realmente era, provavelmente uma agricultora, moradora de Pireu, município vizinho a Atenas. Ela era muito pobre e, por isso, precisava trabalhar para sustentar o filho de menos de dois anos. O outro filho, de sete anos, havia morrido no Natal de 1895. As pesquisas não mencionam seu estado civil.
Stamata tinha ouvido falar que poderia conseguir uma oportunidade melhor em Atenas e, por essa razão, partiu para lá a pé, com o bebê no colo, pois não tinha dinheiro para o transporte. No caminho, encontrou um rapaz praticando corrida que ao ver seu estado de pobreza, com uma criança pequena no colo, deu-lhe algum dinheiro e sugeriu que corresse a maratona, pois poderia ficar famosa e com isso conseguir um emprego mais facilmente. De acordo com o Programa Olímpico, o vencedor ganharia uma taça e, também, uma valiosa peça de antiguidade.
Essa prova havia sido sugerida pelo filósofo francês Michel Bréal (1832-1915) a Coubertin, em 1894, com o intuito de homenagear o povo grego na primeira edição dos Jogos Olímpicos. Seria um percurso similar ao realizado pelo mensageiro grego Fidípedes, que em 490 a.C. correu os 40km que separavam a vila de Maratona da cidade de Atenas para avisar aos atenienses que se preparassem para a invasão dos persas. Após seu anúncio, caiu morto, vítima de exaustão. Atenas teve tempo de se organizar, fechar a cidade e passar ilesa ao ataque persa. Assim nasceu a maratona, uma das provas mais populares do mundo. O percurso se iniciaria num ponto de Maratona e terminaria no Estádio Panatenaico.
Stamata acreditava que pudesse chegar à frente de muitos homens, pois estava habituada à corrida de longa distância. Assim, imaginou que se ela corresse a maratona poderia receber algo valioso e teria alguma chance de melhorar de vida. Ao mesmo tempo, consciente do preconceito existente pelo fato de ser mulher, pensou que talvez não fosse prudente e adequado correr sem um acompanhante. No entanto, o desejo de uma vida melhor falou mais alto. Assim, procurou o local da competição na pequena vila de Maratona e, depois de dirigir-se para lá, acampou próximo.
Na véspera da prova oficial, encontrou vários jornalistas, todos homens, que ali estavam para cobrir a competição extraordinária. Ela logo atraiu a atenção dos repórteres. Todos queriam entrevistá-la. Uma mulher querer correr a maratona? Era, sem dúvida, uma grande novidade! Até o prefeito da vila deu-lhe as boas-vindas e a acolheu em sua residência. Stamata era muito animada e perspicaz, seus olhos brilhavam enquanto respondia às perguntas dos repórteres. Um dos atletas fez até um comentário com desdém para provocá-la. Ele disse que quando ela entrasse no estádio, não haveria mais multidões, pois todos já teriam ido embora. Stamata revidou dizendo que ele não deveria insultar as mulheres, já que os atletas gregos do sexo masculino já haviam sido humilhados pelos americanos, que tinham conquistado medalhas de ouro em nove das doze competições que haviam ocorrido nos dias anteriores. Ele então se calou.
Stamata anunciou que iria participar da prova e acrescentou que mesmo que o Comitê Organizador não permitisse que ela corresse com os competidores, ela iria correr atrás deles. Estava profundamente motivada, pois alimentava a esperança de que, se participasse da maratona, poderia receber algo para si ou para seu filho, depois da prova. Perguntaram-lhe quanto tempo demoraria para cobrir a distância até Atenas. Respondeu que precisaria de três horas e meia, talvez menos, e acrescentou que havia sonhado que os organizadores colocariam um prêmio de ouro no colo dela. E que ela correria enquanto suas pernas durassem, com a saia levantada até os joelhos e as mãos na cintura.
A Comissão Organizadora usou a desculpa de que o prazo de inscrição havia expirado para convencê-la a não competir. Afinal, era uma mulher, estava sozinha, e provavelmente não iria conseguir e ainda poderia desprestigiar a prova olímpica. Stamata não se fez de rogada e insistiu bastante. Dessa forma, lhe foi prometido que ela competiria numa outra prova, juntamente com um grupo de mulheres americanas que estavam temporariamente morando em Atenas. Não se sabe se essas mulheres americanas realmente existiram ou se foi um subterfúgio usado pelos dirigentes para se livrarem da pressão de Stamata.
Enfim, Stamata Revithi acabou não participando da maratona, não correu atrás dos competidores nem tampouco com as supostas americanas. Com base nessas informações, pode-se hipotetizar que ela concluiu que estava sendo ludibriada. Tudo levava a crer que os organizadores não queriam que ela participasse da maratona porque era mulher, por conseguinte fraca e inferior. Stamata então decidiu provar que apesar de mulher, era forte e tinha preparo.
No dia seguinte, sábado, 30 de março (11 de abril), às 8h, determinada e munida de muita coragem, Stamata correu o percurso da maratona sozinha. Porém, antes de iniciar sua prova, achou sensato e prudente ter testemunhas para que seu enorme esforço fosse registrado. Assim sendo, pediu que o professor, o prefeito e o magistrado da vila de Maratona assinassem um relatório da corrida escrito à mão testemunhando o horário em que ela iniciaria o percurso. Ela fez a corrida em um ritmo constante e chegou, coberta de suor e poeira da estrada, a Atenas, mais precisamente a Parapigmata, local onde fica hoje o Hospital Evangelismos, às 13h30, ou seja, 5h30 depois de sair de Maratona. Lá ela viu alguns oficiais e pediu que registrassem sua hora de chegada a Atenas.
Eles ficaram espantados de ver uma mulher naquele estado, tão cansada, empoeirada e suada e lhe perguntaram o porquê daquilo, já que mulheres não se apresentavam daquela forma em público. Stamata lhes revelou seu desejo, explicando que gostaria que o rei da Grécia favorecesse seu filho com uma posição no futuro. Por essa razão iria encontrar o secretário-geral do Comitê Olímpico Grego, Timoleon Filimon (1833-1898), para que ele atestasse quantas horas ela levou para correr de Maratona até Atenas. Acrescentou que poderia ter corrido mais intensamente e em menos tempo, mas havia parado para ver algumas lojas ao longo do caminho. Em seguida, pegou seus sapatos de madeira e continuou sua corrida descalça para o centro de Atenas a fim de cumprir seu objetivo. Os relatórios deixam bem claro que Stamata Revithi completou a maratona não oficialmente no dia 11 de abril de 1896.
A partir desse ponto, as pistas da primeira mulher grega que correu a maratona sumiram na poeira da história. Não se sabe se ela conseguiu se encontrar com o secretário-geral do Comitê Olímpico Grego e nem se conseguiu trabalho.
E a Melpomene? Ela havia aparecido em investigações do pesquisador alemão Karl Lennartz, em 1984. Ele tinha consultado jornais alemães, austríacos e franceses que foram cobrir os Jogos de 1896. Esses jornais falavam da presença de uma outra mulher, Melpomene, que também havia corrido a maratona extraoficialmente, e comentavam sobre o treino que ela havia realizado para a maratona. Seriam então duas mulheres? As informações que apareceram nesses jornais, no entanto, eram poucas e desencontradas, dando um ar de mistério a esta personagem, que não tinha sobrenome e nenhum registro de procedência, somente o nome Melpomene.
Em sua pesquisa, Tarasouleas chegou a sugerir que talvez Stamata Revithi tivesse mais um nome, hipótese que não foi confirmada. Na realidade, ambas as mulheres, Stamata e Melpomene, poderiam ser a mesma pessoa, pois alguns jornais não mencionavam nomes, mas ofereciam descrições físicas, que correspondiam a ambas. O pesquisador grego argumenta que não há menção à Melpomene nos jornais gregos da época, mas várias menções à Stamata Revithi. Alguns historiadores hipotetizaram que talvez Melpomene pode ter sido o apelido dado a Stamata Revithi por aqueles que não sabiam seu nome, associando seu rosto e sua frustração à musa grega da tragédia.
Enfim, Stamata Revithi ou Melpomene tornou-se a pioneira na maratona olímpica, extraoficialmente, jamais imaginando o quanto sua atitude representaria décadas depois para o esporte feminino e, especialmente, para a maratona feminina, que teve seu início somente no Programa Olímpico de 1984, em Los Angeles. Foram 88 anos para o COI reconhecer que a mulher tem as mesmas condições que os homens para correr e disputar a maratona olímpica.
Em Paris- 2024 a maratona olímpica será disputada pela primeira vez na história por atletas amadores. Ao todo, 195 brasileiros farão o mesmo percurso dos atletas que correm por medalhas. A prova será realizada entre as duas maratonas oficiais, que ocorrem no dia 10 de agosto para os homens e no dia 11 para as mulheres. Os corredores amadores, homens e mulheres, farão o percurso no dia 10, às 21h. E, quando finalmente os Jogos Olímpicos de Paris terão uma paridade entre homens e mulheres, não seria nada mau homenagear Stamata Revithi, que segue sendo uma inspiração.
FONTES:
MIRAGAYA, A. The process of Inclusion of Women in the Olympic Games. Tese de doutorado, Universidade Gama Filho, 2006. Disponível em: https://library.olympics.com/Default/doc/SYRACUSE/26494/the-process-of-inclusion-of-women-in-the-olympic-games-by-ana-maria-miragaya-lamartine-da-costa-supe?_lg=en-GB
TSONIAS, STAVROS & ANASTASIOU, ATHANASIOS. The First Marathon Races 1st International Olympic Games 1896. Journal of Olympic History, I vol 18 n°3 I December 2010. Acesso em 18 de julho de 2024. Disponível em S.Tsonias-v18n32010.pdf
TAMINI, NOËL. Women always in the race. Olympic Review: Official Publication of the Olympic Movement. Vol. 307, May 1993. Acesso em 19 de julho de 2024. Disponível em Women always in the race / by Noël Tamini - Olympic World Library (olympics.com)
LENNARTZ, KARL. Two women ran the marathon in 1896. Citius, Altius, Fortius: The ISOH Journal. Vol. 2.1, 1994. Acesso em 19 de julho de 2024. Disponível em Two Women Ran the Marathon in 1896 (isoh.org)
TARASOULEAS, Anastasio. Stamata Revithi, "Alias Melpomeni". Olympic Review: Official Publication of the Olympic Movement. Vol. XXVI-17, October-November 1997. Acesso em 20 de julho de 2024. Disponível em Stamata Revithi, "Alias Melpomeni" / by Athanasios Tarasouleas - Olympic World Library (olympics.co
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